ESTOU QUE NEM POSSO

terça-feira, março 30, 2004

Apelo

Porque não vens agora, que te quero,
E adias esta urgência?
Prometes-me o futuro, e eu desespero.
O futuro é o disfarce da impotência...

Hoje,aqui,já,neste momento
Ou nunca mais.
A sombra do alento é o desalento...
O desejo é o limite dos mortais.

Miguel Torga
Rui Vieira 1:19 da manhã |

sexta-feira, março 26, 2004

Encontrei esta história,e gostei muito dela,pode ser que seja uma especie de um conto de fadas dos dias de hoje...



Poesia
A professora mandara-lhes tirar os cadernos das pastas. Na fila da frente, a pequena Helena, sempre aluna exemplar, obedeceu imediatamente. Tirou da pasta um caderno novo em folha com capas cor de tijolo que colocou sobre a carteira. Helena não era nem gorda nem magra; parecia-se com o que uma criança obediente deve parecer, uma criança que ingere refeições substanciais sem um queixume. O cabelo era cuidadosamente penteado em tranças, nem os caracóis mais rebeldes escapavam à disciplina. Nas pernas, as meias estavam devidamente esticadas e direitas. Os sapatos sempre limpos. Um só olhar bastava para perceber que esta criança nunca metia deliberadamente os pés nas poças à ida para casa; não, ela não.
A professora pôs um ponto final, depois de ter escrito a última palavra no quadro, e começou a explicar às crianças o significado de poesia. Era simplesmente uma questão de terminação de palavras; se descobrissem que os finais eram os mesmos, compreenderiam o que era poesia. A professora deu exemplos - dia-Maria, chuva-luva, mesa-tesa. Seguidamente, as crianças teriam de adivinhar a poesia de palavras dadas pela professora. Helena, aluna exemplar, primava pela aplicação. Quando a professora proferiu "pés", respondeu cafés. Os olhos azuis brilhavam-lhe de prazer pela lição ir só a meio e já ter aprendido algo de novo. Houve porém uma certa confusão, causada pelo pequeno Guilherme. Em resposta ao "nevoeiro" da professora, em vez de seguir as regras e dizer qualquer coisa como "chuveiro", gritou "trompete". Todos ficaram surpreendidos, e a professora admoestou-o, mas o pequeno Guilherme mantinha-se irremovível. E muito sério continuou a repetir "trompete", tantas vezes quantas lhe apeteceu. Tinha um ar muito cómico ao dizer isto, porque o cabelo parecia uma escova, de tão espetado.
Depois, a professora disse: "Agora, meus meninos, já sabem o que é poesia. Escrevi no quadro um pequeno poema de um grande poeta. Copiem-no com cuidado nos cadernos e, quando chegarem a casa, aprendam-no de cor."
Helena começou a tarefa imediatamente. Com o aparo novo a arranhar o papel, escreveu no imaculado caderno e em letra certíssima: A asa do vento agitou-se e quedou-se em seguida Enchendo as árvores e os montes de vida Eu caminhava ao sabor da asa do vento Sentei-me quando suspendeu o movimento Acabada a lição, as crianças saíram. Helena, evitando meticulosamente as poças de água, foi direita a casa. Deu um beijo à mãe e ao pai, comeu a sopa, o bife e o doce e descansou uma hora. Depois, começou a fazer os trabalhos de casa. Tirou o caderno e abriu-o. Havia dois poemas. Um que copiara do quadro, "A asa do vento agitou-se e quedou-se em seguida", e o outro que fora impresso em letras grandes pela Empresa de Papelaria do Estado:


Por semana, toma um banho uma vez
Para não cheirar mal de um mês


Qual seria para decorar? Pobre Helena, por mais que se esforçasse, não conseguiu lembrar-se. Ambos eram bons poemas, sobre isso não havia dúvidas. "Seguida" e "vida" num, e "vez" e "mês" no outro.
Por fim, visto ser uma criança metódica a quem fora ensinado o trabalho sistemático da esquerda para a direita, aprendeu "Por semana, toma um banho" e foi dar um passeio com a mãe.
No dia seguinte, na escola, a professora pediu-lhe para recitar o poema. Fê-lo com sentimento, mas, para sua surpresa e desgosto, pela primeira vez na vida não teve nota. O resto da lição foi monótono, com excepção de um pequeno incidente com Guilherme, que não aprendera nada.
Ninguém notou que este foi um dia decisivo na vida de Helena. O seu carácter sofreu uma profunda transformação. Ao ir para casa, reparou num anúncio duma montra: "Poupe trabalho com macarrão - compre-o já preparado pelo João". "Macarrão-João", repetiu para si mesma, contente enquanto metia os pés nas poças.
Ao chegar a casa, tirou todos os cadernos da pasta e examinou-os com cuidado. Descobriu um slogan em todos eles, embora alguns não rimassem. Num, por exemplo, viu uma simples ordem: "Mantém-no limpo". Lembrando-se dos ensinamentos da sua professora, juntou com letra infantil: - Come corinto". À noite estava com febre muito alta.
Como mudara! Nunca mais comeu obedientemente o que lhe apresentavam. Exigia conforme os apetites, um dia molho tártaro, outro vol-au-vent, outro gulash húngaro, e nunca ficava satisfeita. Viver com ela tornou-se difícil. Saía todos os dias, atirando com a porta para ir a um restaurante. Em vez de se deitar cedo, lia ate à meia-noite ou "Contos de Andersen" ou "Histórias Polacas do Tio João". Quando tinham visitas, em vez de dar os bons dias com delicadeza, saudava-os com:

Aqui não se fia a ninguém
Crédito é coisa que Deus tem
Mataram-no as dúvidas que tinha
Paz à sua alma que não a minha

Helena decidiu ser poeta.
Tinha um caderno especial para os seus versos.

Ir com os outros do P. M. A.
É a única maneira que há
Herói que é herói não debanda
Só para a frente é que anda
Vinde apanhar o lixo, tinhosos
Que vos há-de tornar famosos

E muitos, muitos outros.

Na escola habituaram-se à sua nova maneira de ser. Mas continuou a haver incidentes com o pequeno Guilherme. Nunca aprendia nada.

Mrozeck; O elefante, editorial estampa, nº 2, livro-B
Rui Vieira 1:15 da manhã |

terça-feira, março 23, 2004

Recado


ouve-me
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte


vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer - vai por esse campo
de crateras extintas - vai por essa porta
de água tão vasta quanto a noite


deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo - deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração - ouve-me


que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal
a morada eterna - o mar por onde fugirá
o etéreo visitante desta noite


não esqueças o navio carregado de lumes
de desejos em poeira - não esqueças o ouro
o marfim - os sessenta comprimidos letais
ao pequeno-almoço



Al Berto, Horto de Incêndio
Rui Vieira 11:28 da tarde |
Poema do silêncio


Sim, foi por mim que gritei,
Declamei,
Atirei frases em volta.
Cego de angústia e de revolta.

Foi em meu nome que fiz
A carvão, a sangue, a giz,
Sátiras e epigramas nas paredes
Que eu não vi serem necessárias e vós vedes.

Foi quando compreendi
Que nada me dariam do infinito que pedi,
Que ergui mais alto o meu grito,
E pedi mais infinito!

Eu, o meu eu rico de vícios e grandezas,
Foi a razão das épi-trági-cómicas empresas
Que, sem rumo,
Alevantei com ironia, sonho, e fumo...

O que eu buscava
Era, como qualquer, ter o que desejava.
Febre de Mais, ânsias de Altura e Abismo
Tinham raízes banalíssimas de egoísmo.

E só por me ter vedado
Sair deste meu ser pequeno e condenado,
Erigi contra os céus o meu imenso Engano,
De tentar o ultra-humano, eu que sou tão humano!

Senhor meu Deus em que não creio!
Nu a teus pés abro o meu seio:
Procurei fugir de mim,
Mas eu bem sei que sou o meu único fim.

Sofro, assim, pelo que sou,
Sofro por este chão que aos pés se me pegou,
Sofro por não poder fugir,
Sofro por ter prazer em me acusar e em me exibir!

Senhor meu Deus em que não creio porque és minha criação!
(Deus, para mim, sou eu - sou eu chegado à perfeição...)
Senhor! dá-me o poder de estar calado,
Imóvel, manietado, iluminado!

Se os gestos e as palavras que sonhei,
Nunca os usei nem usarei,
Se nada do que eu levo a efeito vale,
Que eu me não mova! que eu não fale!

Também sei bem que embora trabalhando só por mim,
Era por um de nós. E assim,
Neste meu vão assalto a nem sei que felicidade,
Lutava um homem pela humanidade.

Mas o meu sonho megalómano é maior
Que a própria dor
De compreender como é supremamente egoísta
A minha máxima conquista!

Senhor! que nunca mais meus versos sôfregos e impuros
Me rasguem, e meus lábios cerrarão como dois muros,
E o meu silêncio, como incenso, atingir-te-á,
E sobre mim de novo descerá...

Sim, descerá da tua mão compadecida,
Meu Deus em que não creio! e porá fim à minha vida:
E uma terra sem flor e uma pedra sem nome
Saciarão a minha fome!



José Régio
Rui Vieira 11:25 da tarde |

domingo, março 07, 2004

O Amor em Visita



Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra

o seu arbusto de sangue. Com ela

encontrarei a noite.

Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.

Seus ombros beijarei, a pedra pequena

do sorriso de um momento.

Mulher quase incriada, mas com a gravidade

de dois seios, com o peso lúbrico e triste

da boca. Seus ombros beijarei.



Cantar? Longamente cantar,

Uma mulher com quem beber e morrer.

Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave

o atravessar trespassada por um grito marítimo

e o pão for invadido pelas ondas,

seu corpo arderá mansamente sob o s meus olhos palpitantes

ele - imagem inacessível e casta de um certo pensamento

de alegria e de impudor.



Seu corpo arderá para mim

sobre um lençol mordido por flores com água.

Ah! Em cada mulher existe uma morte silenciosa:

e enquanto o dorso imagina, sob nossos dedos,

os bordões da melodia,

a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,

desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.

- Ó cabra no vento e na urze, melhor nua sob

as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe

mulher de pés no branco, transportadora

da morte e da alegria!


HERBERTO HELDER
Rui Vieira 12:13 da manhã |

sábado, março 06, 2004

Fala do Homem Nascido
Chega à boca da cena, e diz:





Venho da terra assombrada,

do ventre da minha mãe;

não pretendo roubar nada

nem fazer mal a ninguém.

Só quero o que me é devido

por me trazerem aqui,

que eu nem sequer fui ouvido

no acto de que nasci.



Trago boca para comer

e olhos para desejar.

Com licença, quero passar,

tenho pressa de viver.

Com licença! Com licença!

Que a vida é água a correr.

Venho do fundo do tempo;

não tenho tempo a perder.



Minha barca aparelhada

solta o pano rumo ao norte;

meu desejo é passaporte

para a fronteira fechada.

Não há ventos que não prestem

nem marés que não convenham,

nem forças que me molestem,

correntes que me detenham.

Quero eu e a Natureza,

que a Natureza sou eu,

e as forças da Natureza

nunca ninguém as venceu.



Com licença! Com licença!

Que a barca se faz ao mar.

Não há poder que me vença.

Mesmo morto hei-de passar.

Com licença! Com licença!

Com rumo à estrela polar.



António Gedeão
Rui Vieira 5:28 da tarde |
Forma de Inocência


Hei-de morrer inocente

exactamente

como nasci.

Sem nunca ter descoberto

o que há de falso ou de certo

no que vi.



Entre mim e a Evidência

paira uma névoa cinzenta.

Uma forma de inocência,

que apoquenta.



Mais que apoquenta:

enregela

como um gume

vertical.

E uma espécie de ciúme

de não poder ver igual



António Gedeão
Rui Vieira 5:26 da tarde |
ENQUANTO



Enquanto houver um homem caído de bruços no passeio

e um sargento que lhe volta o corpo com a ponta do pé

para ver como é;

enquanto o sangue gorgolejar das artérias abertas

e correr pelos interstícios das pedras,

pressuroso e vivo como vermelhas minhocas despertas;

enquanto as crianças de olhos lívidos e redondos como luas,

órfãs de pais e de mães,

andarem acossadas pelas ruas

como matilhas de cães;

enquanto as aves tiverem de interromper o seu canto

com o coraçãozinho débil a saltar-lhes do peito fremente,

num silêncio de espanto.

rasgado pelo grito da sereia estridente;

enquanto o grande pássaro de fogo e alumínio

cobrir o mundo com a sombra escaldante das suas asas

amassando na mesma lama de extermínio

os ossos dos homens e as traves das suas casas;

enquanto tudo isto acontecer, e o mais que se não diz por ser verdade,

enquanto for preciso lutar até ao desespero da agonia,

o poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade:



ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA


António Gedeão
Rui Vieira 5:24 da tarde |


"Amor é fogo que arde sem se ver"

Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

CAMÕES
Rui Vieira 5:22 da tarde |
SABERÁS que não te amo e que te amo
posto que de dois modos é a vida,
a palavra é uma asa do silêncio,
o fogo tem uma metade de frio.

Eu te amo para começar a amar-te,
para recomeçar o infinito
e para não deixar de amar-te nunca:
por isso não te amo todavia.

Te amo e não te amo como se tivesse
em minhas mãos as chaves da fortuna
e um incerto destino desditoso.

Meu amor tem duas vidas para amar-te.
Por isso te amo quando não te amo
e por isso te amo quando te amo.

PABLO NERUDA
Rui Vieira 5:20 da tarde |