ESTOU QUE NEM POSSO

quarta-feira, maio 26, 2004

E por vezes

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos

[David Mourão-Ferreira]
Rui Vieira 3:07 da manhã |

domingo, maio 23, 2004

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob as montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este braço
que é uma arma de dois gumes amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração.

António Ramos Rosa
Rui Vieira 9:33 da tarde |
Este homem que pensou
com uma pedra na mão
tranformá-la num pão
tranformá-la num beijo

Este homem que parou
no meio da sua vida
e se sentiu mais leve
que a sua própria sombra

António Ramos Rosa
Rui Vieira 9:31 da tarde |
Poema dum Funcionário Cansado

A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só

António Ramos Rosa
Rui Vieira 9:30 da tarde |
ESTRELA DA TARDE


ERA A TARDE MAIS LONGA DE TODAS AS TARDES
QUE ME ACONTECIA
EU ESPERAVA POR TI, TU NÃO VINHAS
TARDAVAS E EU ENTARDECIA
ERA TARDE, TÃO TARDE, QUE A BOCA,
TARDANDO-LHE O BEIJO, MORDIA
QUANDO À BOCA DA NOITE SURGISTE
NA TARDE TAL ROSA TARDIA
QUANDO NÓS NOS OLHÁMOS TARDÁMOS NO BEIJO
QUE A BOCA PEDIA
E NA TARDE FICÁMOS UNIDOS ARDENDO NA LUZ
QUE MORRIA
EM NÓS DOIS NESSA TARDE EM QUE TANTO
TARDASTE O SOL AMANHECIA
ERA TARDE DE MAIS PARA HAVER OUTRA NOITE,
PARA HAVER OUTRO DIA. (REFRÃO)
MEU AMOR, MEU AMOR
MINHA ESTRELA DA TARDE
QUE O LUAR TE AMANHEÇA E O MEU CORPO TE GUARDE.
MEU AMOR, MEU AMOR
EU NÃO TENHO A CERTEZA
SE TU ÉS A ALEGRIA OU SE ÉS A TRISTEZA.
MEU AMOR, MEU AMOR
EU NÃO TENHO A CERTEZA.
FOI A NOITE MAIS BELA DE TODAS AS NOITES
QUE ME ACONTECERAM
DOS NOCTURNOS SILÊNCIOS QUE À NOITE
DE AROMAS E BEIJOS SE ENCHERAM
FOI A NOITE EM QUE OS NOSSOS DOIS
CORPOS CANSADOS NÃO ADORMECERAM
E DA ESTRADA MAIS LINDA DA NOITE UMA FESTA
DE FOGO FIZERAM.
FORAM NOITES E NOITES QUE NUMA SÓ NOITE
NOS ACONTECERAM
ERA O DIA DA NOITE DE TODAS AS NOITES
QUE NOS PRECEDERAM
ERA A NOITE MAIS CLARA DAQUELES
QUE À NOITE AMANDO SE DERAM
E ENTRE OS BRAÇOS DA NOITE DE TANTO
SE AMAREM, VIVENDO MORRERAM. (REFRÃO)
EU NÃO SEI, MEU AMOR, SE O QUE DIGO
É TERNURA, SE É RISO, SE É PRANTO
É POR TI QUE ADORMEÇO E ACORDO
E ACORDADO RECORDO NO CANTO
ESSA TARDE EM QUE TARDE SURGISTE
DUM TRISTE E PROFUNDO RECANTO
ESSA NOITE EM QUE CEDO NASCESTE DESPIDA
DE MÁGOA E DE ESPANTO.
MEU AMOR, NUNCA É TARDE NEM CEDO
PARA QUEM SE QUER TANTO!

José Carlos Ary dos Santos





Rui Vieira 2:06 da tarde |

NO TEU POEMA


NO TEU POEMA,
EXISTE UM VERSO EM BRANCO E SEM MEDIDA.
UM CORPO QUE RESPIRA, UM CÉU ABERTO,
JANELA DEBRUÇADA PARA A VIDA.
NO TEU POEMA EXISTE, A DOR CALADA LÁ NO FUNDO
O PASSO DA CORAGEM EM CASA ESCURA,
E, ABERTA, UMA VARANDA PARA O MUNDO.
EXISTE A NOITE,
O RISO E A VOZ REFEITA À LUZ DO DIA.
A FESTA DA SENHORA DA AGONIA,
E O CANSAÇO
DO CORPO QUE ADORMECE EM CAMA FRIA.
EXISTE UM RIO,
A SINA DE QUEM NASCE FRACO OU FORTE.
O RISCO, A RAIVA E A LUTA DE QUEM CAI
OU QUE RESISTE,
QUE VENCE OU ADORMECE ANTES DA MORTE.
NO TEU POEMA,
EXISTE O GRITO E O ECO DA METRALHA.
A DOR QUE SEI DE COR MAS NÃO RECITO,
E OS SONHOS INQUIETOS DE QUEM FALHA.
NO TEU POEMA,
EXISTE UM CANTOCHÃO ALENTEJANO,
A RUA E O PREGÃO DE UMA VARINA.
E UM BARCO ASSOPRADO A TODO O PANO.
EXISTE UM RIO,
O CANTO EM VOZES JUNTAS, VOZES CERTAS,
CANÇÃO DE UMA SÓ LETRA E UM SÓ DESTINO
A EMBARCAR,
NO CAIS DA NOVA NAU DAS DESCOBERTAS.
EXISTE UM RIO,
A SINA DE QUEM NASCE FRACO OU FORTE
O RISCO, A RAIVA E A LUTA DE QUEM CAI
OU QUE RESISTE
QUE VENCE OU ADORMECE ANTES DA MORTE.
NO TEU POEMA
EXISTE A ESPERANÇA ACESA ATRÁS DO MURO
EXISTE TUDO O MAIS QUE AINDA ME ESCAPA
E UM VERSO EM BRANCO À ESPERA DO FUTURO.


José Luís Tinoco
Rui Vieira 2:03 da tarde |

segunda-feira, maio 10, 2004

ULTIMATUM
FUTURISTA



ÀS GERAÇÕES PORTUGUESAS DO SÉC. XXI

Acabemos com este maelstrom de chá morno!
Mandem descascar batatas simbólicas a quem disser que não há tempo para a criação!
Transformem em bonecos de palha todos os pessimistas e desiludidos!
Despejem caixotes de lixo à porta dos que sofrem da impotência de criar!
Rejeitem o sentimento de insuficiência da nossa época!
Cultivem o amor do perigo, o hábito da energia e da ousadia!
Virem contra a parede todos os alcoviteiros e invejosos do dinamismo!
Declarem guerra aos rotineiros e aos cultores do hipnotismo!
Livrem-se da choldra provinciana e da safardanagem intelectual!
Defendam a fé da profissão contra atmosferas de tédio ou qualquer resignação!
Façam com que educar não signifique burocratizar!
Sujeitem a operação cirúrgica todos os reumatismos espirituais!
Mandem para a sucata todas as ideias e opiniões fixas!
Mostrem que a geração portuguesa do século XXI dispõe de toda a força criadora e construtiva!
Atirem-se independentes prá sublime brutalidade da vida!
Dispensem todas as teorias passadistas!
Criem o espírito de aventura e matem todos os sentimentos passivos!
Desencadeiem uma guerra sem tréguas contra todos os "botas de elástico"!
Coloquem as vossas vidas sob a influência de astros divertidos!
Desafiem e desrespeitem todos os astros sérios deste mundo!
Incendeiem os vossos cérebros com um projecto futurista!
Criem a vossa experiência e sereis os maiores!
Morram todos os derrotismos! Morram! PIM!

J o s é d e A l m a d a N e g r e i r o s

P O E T A

F U T U R I S T A
E
T U D O




Nota: Este ultimatum deve ser lido pelo menos duas vezes prós muito inteligentes e d'aqui pra baixo é sempre a dobrar.




Rui Vieira 11:29 da tarde |

segunda-feira, maio 03, 2004

As mulheres aspiram a casa para dentro dos pulmões


As mulheres aspiram a casa para dentro dos pulmões
E muitas transformam-se em árvores cheias de ninhos - digo,
As mulheres - ainda que as casas apresentem os telhados inclinados
Ao peso dos pássaros que se abrigam.

É à janela dos filhos que as mulheres respiram
Sentadas nos degraus olhando para eles e muitas
Transformam-se em escadas

Muitas mulheres transformam-se em paisagens
Em árvores cheias de crianças trepando que se penduram
Nos ramos - no pescoço das mães - ainda que as árvores irradiem
Cheias de rebentos

As mulheres aspiram para dentro
E geram continuamente. Transformam-se em pomares.
Elas arrumam a casa
Elas põem a mesa
Ao redor do coração.



Daniel Faria
de Homens Que São Como Lugares Mal Situados (1998)
Rui Vieira 2:31 da manhã |